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O Beijo da Tempestade Tropical


Na pequena casa de chapa e zinco, no bairro do Xipamanine, moram duas almas filhas do Senhor. Pobres, porém crentes, não reclamam da qualidade que a vida lhes pôs no paladar, nem dos homens que estão à sua volta. Tudo é rotativo, tudo faz sentido ao ver dessas duas almas, tão crentes quanto sofredoras. Mamana Maria e sua neta, mais uma entre tantas neste bairro, abandonadas pela sua Mãe. Para onde elas foram? Para onde elas se vão? Para onde? Para onde outras mais irão? Mamana Maria não sabe explicar, não sabe para onde foram os seus corpos, mas sabe para onde partiram as suas almas. Os sorrisos das flores que perfumavam o bairro, mesmo estando no meio de tanta imundice. Flores são sempre flores, ainda que estejam entre os espinhos.

Mas a mamana Maria entende as mulheres, que outrora foram as raparigas das capulanas coloridas, sorrisos nos lábios, dançarias dos sons do espírito do Xipamanine entre as tardes tão lindas em épocas tão sofridas, tão sofridas quanto hoje. Preocupa-a bastante o destino tão óbvio quanto repugnante, que muitas são condenadas a seguir. Enquanto sentada debaixo de uma sombra improvisada, com sacos plásticos e algumas chapas...mamana Maria pensa. Pensa em Anabela, sua querida neta. São quatro horas da tarde, sente-se o sol dando-nos um beijo bem forte. Suas reflexões vão desaguar no mesmo motivo. "O que eu vou dar a minha neta hoje de noite, que farei para saciar o corpo..."? Esta frase sempre lhe ensombra o espírito, Pobreza! Pobreza que sempre esteve de mãos dadas com ela, sua fiel companheira. Por sua pobreza, ninguém mais se preocupou em magoar-lhe ainda mais, mas a mesma dá-lhe golpes valentes em seu quotidiano. "Luto para que a minha neta não tenha o mesmo destino que minha filha. Filha, como dói pronunciar isto. Como podes tu ter este esquecido dela, como? Não peço que te lembres de mim, não, a minha missão eu cumpri, cuidei da tua pessoa, te fizeste mulher e que mulher! Todo janota do bairro estava interessado em ti. Se tivesses ficado tão inteligente e humilde quanto bela, serias um bom exemplo no meio desta comunidade. Mas pelo contrário, seguiste o caminho perverso e mais fácil, onde somente a beleza tem poder e é mais apreciada. Nunca direi à Anabela que vives, nunca. Deus me perdoe. Como posso eu falar? De onde posso tirar forças para saber que passas pelo bairro que te viu germinar e florescer e nem sequer olhas para o lado. Será que existe em ti algum sentimento por este pedaço de sofrimento e "beleza"? Custa-me crer que o Xipamanine que tanto amavas, foi apagado do teu coração por bens materiais. Quando me entregaste a Anabela, aqui nesta mesma banca onde me encontro agora, disseste Tu: Mãe, vou ao mercado comprar algo para o jantar, o António deu-me dinheiro... Senti meu coração a bater naquele exacto momento, mas de tão optimista que sou, espantei logo a ideia de que te ias embora. Pois estavas fazendo o mesmo que tantas outras fizeram, estavas seguindo os passos das histórias tristes. E agora, vejo-te entre a cidade de Maputo, entre os mais requintados automóveis. Será que me reconheces? Oh Minha filha, será que te lembras que deixaste comigo o fruto do teu ventre? Não sinto por mim, sinto por ela e sinto medo, que um dia siga o mesmo rumo que tu seguiste".

Mamana Maria, é mais uma mulher vítima dos passos gananciosos do mundo, ela também teve em seus tempos tentações idênticas a que as meninas de ontem e mulheres de hoje tiveram. Mas depois de tantos testemunhos que teve, de casos frustrados pela "justiça maligna" nunca mais pensou em vender seu corpo para saciar seus desejos e caprichos. "As meninas não ouvem a voz da experiência... Julgam isto inédito. Tolo, nada é inédito no gueto, tentamos advertir mas somos dadas como loucas, não posso deixar que a minha neta caia no mesmo erro..."

Seus pensamentos são interrompidos por uma música que está passando em seu rádio portátil, mais um companheiro nas longas jornadas da venda de carvão, relembra as cheias do ano dois mil nessa "terra sonâmbula" que se chama Moçambique:

"Chove chuva,

Chove sem parar

Chove Chuva

Chove sem parar

Hoje eu vou fazer uma prece

A Deus, nosso senhor

Para a Chuva parar,

De molhar, o meu querido amor..."

Apesar de ter ido somente até à 3ª classe do antigo sistema, Mamana Maria sempre se interessou em actualizar-se, escutar as notícias, o estado da nação. Embora os fartos progressos anunciados no jornal pelo Estado nunca se farão sentir em seu meio, ela sempre procura informar-se e saber como vai o mundo. Procura sempre a rádio "R.M" (estação local, que apresenta noticiário em língua local, o changana) e viaja pelo mundo fora. Na época das cheias, quase que inundava o seu corpo com tantas lágrimas engolidas. Ao ter ouvido a história da menina "Rosita" a menina que foi nascida em uma árvore, tudo estava inundado, as palhotas (casas tradicionais africanas) mal se viam, haviam morrido montes de animais assim como pessoas. Moçambique estava em alerta vermelho. A mãe da menina Rosita encontrava-se em últimos dias da gravidez, talvez o nervosismo possa ter antecipado, a verdade é que ela já não aguentava mais, a menina pedia pra nascer. E em que lugar? Entre os galhos de uma árvore que também estava prestes para ser engolida pela fúria das águas. Mas a menina precisava nascer, as mulheres que se encontravam na mesma aflição, ajudaram a Rosita a vir ao mundo. Foi algo emocionante "Rosita, a menina que nasceu em cima de uma árvore e que foi beijada com um temporal" a notícia correu pelo mundo inteiro, arrancou lágrimas de muita fonte, incluindo Mamana Maria, que ouvia essa notícia em cima de uma mesa em sua casa. Pois não podia dormir, a sua casa também estava inundada e em seus braços estava a sua neta de 2 anos que dormia como se nada estivesse acontecendo. Todo o bairro do Xipamanine, assim como a rival Mafalala e a companheira Chamanculo...encontravam-se inundados. Ninguém saía e ninguém entrava a não ser os repórteres! É assim que é em Maputo sempre que chove, a chuva é motivo de alegria no campo, mas na cidade de Maputo é a treva!

Mamana Maria escutava a rádio e nesse mesmo tempo nuvens escuras cobriam o céu, o sol tão picante que existia, parou de brilhar. Era Deus mudando o seu semblante. Em breve, um ribombar estalou entre os céus e espalhou-se pelos becos do Xipamanine. Nesse mesmo instante vinha a sua neta correndo, toda assustada. Mamana Maria dirigiu-lhe a palavra:

-Que se passa minha neta?

-Tenho medo Vovó, dizem que leva as crianças. Tenho medo!

-Não temas minha neta, estou aqui e Deus também. Ninguém virá levar-te e se quiserem, eu vou também! É só um relâmpago!

-Mas vovó, vai chover!

Mamana Maria olha para a neta com um olhar triste, ambas já sabem o que isso significa. Vão passar a noite acordadas escutando rádio e quando a casa estiver se inundando, subirão na mesa ficarão com um guarda-chuva. Abraçando-se e chorando, ou aliviando a tristeza contando piadas, ou rezando!

- Não te preocupes minha neta, estarei contigo. Nós vamos superar isto. Agora ajuda-me a tirar isto e vamos para casa. Tenho de preparar a ceia enquanto é cedo. E hoje farei o teu prato predilecto! E vou contar-te a história da Rosita! A menina que nasceu na árvore e que ficou conhecida em todo mundo!

A neta esboça um sorriso, será o seu prato preferido. Nada menos que uma massa branca e um molho de tomate! Uma fortuna para uma família como aquela! Passados alguns minutos as duas almas recolhem para o seu aconchego, com os corações já prontos para enfrentar a longa noite que virá. O céu está escuro, tão escuro quanto as noites sem estrelas. Hoje não se dorme, mas ainda há amor e esperança!

Assim é a vida em bairros periféricos da cidade de Maputo, quando chove, as lágrimas do povo ajudam a inundá-los.

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