O Abraço de Deus




Assim que a Doutora lhe entregou o resultado, Gisela bateu a porta e saiu com a cara lavada em lágrimas e nem quis ouvir o que ela tinha a dizer. Na verdade já sabia, diria que há um tratamento adequado, que deveria presar a vida e não recorrer a soluções extremas... Todo esse” palavreado” que dizem aos infectados assim que tem o resultado dos exames em suas mãos. Como tantos outros, Gisela não quis dar atenção, aquilo não faria sentido algum. Seria como tentar escrever na água, seus ouvidos estavam surdos e o seu interior era barulhento. Havia um grito cortante e profundo ferindo-lhe as entranhas. Suas forças haviam sumido pelos nervos que tivera antes de ter a péssima notícia e pela dor que teve assim que a recebeu. Na verdade, já esperava por ela, só por isso foi até ao centro de aconselhamento GATV (centro de atendimento aos infectados pelo HIV). Não aguentava mais viver na sombra da dúvida, assim que a maré encontrava-se boa, algo lhe lembrava que o tempo poderia mudar bruscamente. As noites eram passadas em claro, não por falta de sono, mas sim para fugir ao tão óbvio pesadelo. Então embriagava-se pela noite dentro, perdia-se entre as pistas de dança, não porque estivesse sentindo a música agradando o ouvido e a sua alma, mas para fatigar o seu corpo. Tinha nojo de si mesma no estado “normal”, só encontrava respostas para os seus actos quando estivesse sobre o embalo da droga e do álcool. Quando assim estivesse, Gisela não sorria, mostrava os dentes e gritava , não se ouvia um riso, ecoava demência... as suas noites eram de dia, os seus dias eram de noite, no seu estado inconsciente ela não fazia o mal e nem o bem, apenas sofria. Despertava sempre com um grito que era logo abafado com goles de bebidas secas. Seus únicos gemidos de prazer eram quando sentia a virilidade alheia percorrendo-lhe o corpo, nesse instante o seu mundo parava de girar, fazia-lhe respirar suavemente, como um dragão que inspira enxofre e tão bem se sente! Somente o pecado lhe conferia prazer e a razão de viver...

Mas Gisela já não suportava tudo aquilo, por vezes o coração recusa-se a crer em várias evidências lúcidas que o cérebro apresenta, pois o medo é o melhor travão que existe, porem é uma caminhada longa, repleta de tormentos, mas a dor, pelo menos , significa ter chegado!

Por isso mesmo Gisela decidiu pôr fim a aquela perseguição horrenda. Pela primeira vez na vida surgiu-lhe algo chamado esperança, havia um presente e um passado tumultuoso, porém aquela palavra prometia-lhe um futuro radioso, uma terra nunca vista por baixo do seu sol. Há muito que estava sozinha e não notava, talvez por isso tivesse medo de estar lúcida, dona de si própria, mas não de suas vontades.

Assim que saiu do consultório, Gisela via apenas o escuro que ela tanto idolatrava. Sentia-se a caminhar para um precipício . Os filhos de Lúcifer cantavam-lhe a música de boas vindas bem antes de ter passado à inexistência. Várias formas de suicídio passavam pela sua frente como um flash, como um actor que assiste a sua própria obra, assim era ela, vendo o seu próprio fim antes de ter chegado (o que aumentava ainda mais o terror). Passavam-lhe todas as injustiças e ofensas dirigidas a gente que só agora notava que lhe queria bem. Desejava tanto estar com eles, como quem vê o decorrer de uma festa animada na casa do vizinho, mas que não pode ir porque pura e simplesmente não foi convidado, e se forçasse a entrada, sentiria o próprio inferno dentro de si. O corpo esquelético de Gisela já não aguentava suportar tudo isto, pois a sua mente já se encontrava morta há muito tempo. Assim que avistou o primeiro muro em que podia sentar-se e deixar o dilúvio de lágrimas sair, correu para lá e abriu as comportas do seu coração. Ela chorava, enquanto isso o mundo andava. As pessoas olhavam-a e passavam, cada um seguia o seu caminho. Se prendiam os olhares, neles só encontrava indiferença. Então baixou a cabeça e afogou a cara nas mãos. Ficou assim durante vários minutos, sentindo as lágrimas quentes molhando-lhe o rosto e o peito. Evitava a luz, mas o escuro assustava-a... tirou as mãos da cara, havia decidido olhar para o céu e pedir perdão àquele que sempre havia ignorado ...DEUS!

Tirou as mãos do rosto e quando abriu os olhos e preparava-se para inclinar a cabeça para o altar do Senhor, o seu olhar, em vez do céu, prendeu-se no de um menino robusto e forte. Olhava para ela com um brilho penetrante que iluminava as trevas do seu ser. Era a primeira vez que encarava uma criança assim, aiiiiiiiii... Gisela detestava crianças!!! Quando estas vinham-lhe ao encontro tudo que fazia era ralhar-lhes logo à primeira para impor distância. Mas desta vez foi diferente, o menino olhava-lhe com doçura e tristeza ao mesmo tempo, parecia estar tão triste quanto ela... ohhhh ele andava vagarosamente em sua direcção, como quem pisa em chão sagrado, rumo ao tão esperado momento de amparo...

Finalmente o menino chegou à sua frente, esticou a mão e saltou para sentar-se no muro. Já sentado encarou-a novamente, os seus olhares estavam fixos um no outro. Até que o pequeno lhe dirigiu a palavra.

-Mana, porque choras?

Silêncio...

-Mana, diz-me porque choras!

Novamente Gisela não teve forças para responder.

-Eu sei porque choras, choras porque estás triste. O chorar faz bem, limpa a alma. É o que o meu avô diz, não quero saber o que te fez chorar, só quero te dizer que “são as nuvens mais escuras, que descarregam chuva sobre a terra e a fecundam” É, o meu avô também diz que as nossas lágrimas servem para expulsar dores acumuladas, assim que elas caem, um novo dia radiante se aproxima. O meu avô é um homem muito inteligente.

Gisela estava imóvel, sem palavras algumas e muito menos actos. Simplesmente continuou olhando para o anjo, este passou suas mãozinhas pelo rosto dela e deu-lhe um abraço. Naquele mesmo instante todas as sombras do seu ser desapareceram, foram invadidas por algo radiante. Em vez de gritos satânicos, ouviram-se trombetas dos anjos, eles cantavam e dançavam, pela filha que voltava para casa.

O menino desprendeu-se dela delicadamente e disse:

-Chamo-me Pedro!

Sorriu, e correu, perdeu-se entre a multidão...

Gisela olhou para o céu com um sorriso nos lábios, depois de tanto tempo ele saiu puro. Sentiu forças acima do normal, uma autêntica vontade de viver e conviver!


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