A Filosofia do Paciência
Terminada a aula de Português, José pegou na sua mochila e saiu da sala desmoralizado. A professora havia dado um dever de casa "estupidamente difícil", visto que a sua "praia" eram os números. A ideia de ter de pensar em alguma coisa aparentemente lógica, excedendo dez linhas, deixava o menino José fora de si, ou melhor, com um vulcão dentro de si, uma autêntica erupção que saia em formato de gestos bruscos pela rua. Uma vez que ele detestava errar, apresentar um péssimo trabalho, avistar no horizonte uma provável negativa deixava-o furioso. Ter de aturar risos e olhares escarnecedores dos colegas "sabichões" nas palavras, enfurecia-o por completo. Mas desta vez José estava decidido a superar esse obstáculo, só não sabia como.A professora havia dito que deviam escrever em poucas linhas uma história com uma lição de vida que poderia "mover as massas" rumo a um mundo melhor."Ora essa, eu só tenho 10 anos, onde é que vou apanhar uma lição de vida para mover massas? Ainda mais massas velhas e jovens, antes fosse só uma massinha muleke"Pensava o pequeno matemático rumo a sua casa. A capacidade de ser somente dotado pela arte de poder somar, subtrair e dividir facilmente, parecia-lhe algo minúsculo. Ele queria algo que o ajudasse a afrontar os colegas que escarneciam da sua "inteligencia limitada". Pois é, José era magnifico a matemática, ciências naturais... mas era um autentico desastre a Português. Se havia algo que contrastava o seu boletim de notas, eram as notas da disciplina de Português. Estava quase tudo vermelho e o que não dava total tonalidade era uma micharia...Enquanto andava rumo a sua casa, José pensava com desgosto estampado na face. Andava a passos de camaleão e se mudava de cor era interiormente. A sua carrinha nada angelical naquele momento ia apresentando os estágios da transformação. Pobre José, bem sei pelo que passavas miúdo. Mas, no meu caso, era diferente, eu detestava e ainda detesto matemática.Desculpem-me pela interrupção amigos. Continuando, o "puto" estava completamente perdido em seus pensamentos, pensando em uma forma de sair com êxito na futura batalha. A professora havia dito para que buscassem informações junto a pessoas mais velhas, apenas provérbios, algumas frases morais... mas que, quem iria dar a última avaliação, seriam os alunos. José espremia os seus neurónios. Seus pais eram bastante ausentes, na maioria das vezes, quando regressavam ao lar, ele já se encontrava a dormir e quando deixava uma nota com alguma dúvida escrita, colada na geleira ou na mesa de centro da sala... raramente a encontrava esclarecida. Não tinha irmãos mais velhos, somente a sua babá velava por si.
"Não tenho como, mais uma vez irei chupar uma negativa. Não faz sentido, estou farto de ter meio brilho. Esforço-me, mas não consigo, não gosto, detesto as aulas de Português. Se o mundo fosse tão simples como a matemática, tudo seria bem mas fácil. Se, um mais um é igual a dois, ninguém ira alterar isso. Assim será até sempre. Mas, em Português e História, se eu for a dizer algo hoje, amanhã aparece algum tolo desmentindo, triste vida a minha..."
Eh eh eh eh José, acreditas que eu já me perguntei porque os homens da bíblia tentaram construir a torre de babel? Detestei esses "tolos" com todas minhas forças. Sempre fui péssimo a inglês, mas tinha de aprender, tudo por culpa dos homens da torre. Se não tivessem tentado ver o que Deus fazia, estaríamos todos falando a mesma língua até agora.Chegado a casa José bateu na porta e a empregada veio abri-la rapidamente com os trinta e dois dentes à vista. Mas o miúdo estava tão desgostoso da vida que nem ligou para tal brilho. Correu logo ao sofá e lançou-se sobre ele enquanto murmurava:
- Bina estou tramado, Bina estou tramado...
- O que se passa Zé?
- Mandaram-me fazer um trabalho e nem sei por onde começar!- Humm tenha calma rapaz, relaxa, tenho uma novidade para ti.
- Novidade? Por acaso excluíram a disciplina de Português do Currículo escolar? Porque se não for isso nada vai me animar.
- Ah ah ah. Não é nada disso, tens de aprender Português claro, sei que vais dar um jeito para resolver esse "problema" que te atormenta. És um miúdo muito esperto, além de comilão. Eu fiz o bolo de chocolate de que tanto gostas.
- Isso vai saber a amargo...
- Deixa de estórias e escuta o que tenho a dizer. Ao entrares não notaste nada de estranho na porta ou um cheiro nada habitual aqui na sala?
O miúdo levantou a cabeça que estava afogada entre as almofadas do sofá e notou que havia de facto um cheiro estranho, cheirava a… cheirava...como? Era um cheiro como... como, cheirava a... "não gosto muito do cheiro de cigarro, mas me faz lembrar..."
- O AVÔ JORGE ESTÁ AQUI?
Após soltar este grito, observou logo a porta. Dito e feito, lá estava a bengala do avô e o seu chapéu. Como de costume bem brilhante apesar de ser velho, laaa... do tempo em que fazia trabalhos arqueológicos na Ilha de Moçambique. O velho contava-lhe sempre as suas aventuras e José ouvia-o com todo o interesse e inocência de uma flor. Um sol iluminou o seu corpo e acabou invadindo a sua face. Um sorriso suave apareceu entre as rugas provocadas pelo descontentamento. José saiu correndo pela casa toda enquanto gritava pelo avô. Este encontrava-se no quarto do pequeno supervisionando o seu material escolar...Assim que avistou o neto abriu os braços em sinal de "exigência" para receber um abraço caloroso, como só os netos sabem dar. Após alguns afagos dirigiu-lhe a palavra:
- Avô, bendito sejas tu meu avô, estou cá numa situação..
.- Fale meu neto, o que te aflige?
- A professora deu-nos um trabalho para fazer, temos de escrever uma espécie de história que exceda 10 linhas, com uma lição de vida capaz de "mover massas". Olha só isso avô, eu com 10 anos posso escrever algo capaz de mover massas ou massinhas?
-Eh eh eh, és capaz sim meu neto, claro.. Acabaste de ensinar-me algo, não tem nem cinco minutos!
- EU? Ensinei-te algo? O que foi?
- "Os abraços têm identidade, têm alma e os seus Deuses são quem os oferece"
- Avô, pode até ser, mas estou com o cérebro às cambalhotas que nem me apetece meditar nisso... Peço-te, conta-me apenas uma história de vida resumida, capaz de mover massinhas da professora, é que ela é muito fininha... eh eh eh
O rapaz já estava recuperando o humor habitual que só Bina aturava! Quando esta ficava limpando o armário da sala, José surgia como um gatuno a gatinhar. A folgada da Bina usava sempre batas, reclamava do calor... nesses momentos dedicados ao asseio da casa, José empreendia seus dotes de espião. Gatinhava e punha um pequeno espelho em baixo das saias da moça. Depois saia, quando voltava iniciava uma conversa com ela, enquanto mantinha o olhar preso no chão e levantava de vez em quando para sorrir. Mal sabia ela que estavam vendo-lhe as calcinhas ao vivo e a cores (ele sempre tentava, na esperança de encontrá-la sem elas...) Quando a façanha era descoberta, José escafedia-se pela casa e Bina vinha com toda força com um cabo de vassoira na mão ameaçando esquentar a padaria do miúdo.Assim que José soltou a leve gargalhada o seu avô sentou-se consigo enquanto coçava o seu bigode e murmurava "hummmmm", depois de alguns minutos olhou o neto nos olhos e iniciou uma pequena estória.
"Quando eu andava pela ilha de Moçambique fazendo trabalhos arqueológicos para a Universidade, encontrei-me com um velho que se dizia ser Paciência. Era por esse nome que ele era conhecido e foi por ele que se apresentou a mim. Vivia solitário em uma canoa, quase sempre dormindo ou tocando uma pequena viola feita de lata e madeira, com cordas da linha de pesca. Ele só interrompia esse exercício para ir pescar um peixe. Cozinhava-o, comia e dormia. Ao acordar, tocava uma canção de sua autoria, quando terminava dizia um provérbio e ia pescar. Assim era a sua vida. As pessoas já haviam tentado persuadi-lo a mudar de vida. Era um excelente pescador, poderia fazer muito dinheiro e ter uma vida melhor. Comprar roupas, sabão, velas, calçados. Mas o velho Paciência sempre recusou, vinha sempre com respostas inteligentes para os que tentavam criticá-lo.Estive lá e claro fui à praia. Como queria aproveitar um pouco o tempo tentei ter uma conversa com algumas pessoas idosas, ouvir algumas estorias sobre os colonos. Perguntei se havia ali alguém que pudesse ajudar-me na minha pesquisa... não disseram nada, só sorriram e apontaram uma canoa e foram à sua vida. Fiquei pasmo, mas fui em direcção à canoa. Cheguei lá e havia um homem dentro olhando para as nuvens. Pareceu-me entusiasmado com a minha presença. Apresentei-me e disse porque ali estava. Ele gostou do gesto, disse como se chamava (era educado, cordeal).Quando a conversa já estava mais fluída, perguntei-lhe se era ali que vivia, ele disse que sim. Com quem vivia, ele disse que sozinho. Se trabalhava, ele disse que sim. Onde trabalhava, apontou o mar. Se gostaria de mudar-se daquele lugar, disse que não. Se gostaria de vender os peixes que ele pescava na cidade mais próxima... disse que não...Fiquei meio pasmo, não sabia o que dizer, ele não tinha nenhuma perspectiva para o futuro, ao seu ver, não precisava de dinheiro para nada! Sentia-se bem com a vida que levava. Para mim isso não fazia sentido, ele não era um homem velho, ainda era bastante vigoroso... acabei ficando calado por alguns minutos com uma cara de parvo, olhado para ele. Por fim ele sorriu e disse: a terra tem comida para todos, minérios para todos, espaço para todos.... e mesmo com todas essas bênçãos que Alah nos dá, o homem invade o espaço do outro para roubar minérios que ele também tem, para comer algo que o seu chão pode dar... Porquê? Se tudo foi tão bem dividido por Alah. Quando isso acontece vemos guerras, vemos fome, mortes... cada um tira mais do que necessita. Contrói mais do que pode ocupar... isso só dá em desavenças, porque no final de contas, passam mais tempo disputando do que desfrutando o que têm. Perguntaste porque vivo aqui e etc... eu vivo aqui porque este lugar responde às minhas necessidades, eu só preciso de uma canoa, uma lona, mar com peixes, fogo, uma guitarra e paz. Com isso sou feliz! Quem não precisa de ser feliz como eu, PACIÊNCIA!!!!Em seguida pegou na sua guitarra e tocou algo que não cheguei a compreender perfeitamente, era uma bela melodia, mas em língua local. Acabei batendo as palmas de tão espantado que estava, por tanta sabedoria e humildade dentro de uma canoa.
- Gostei muito da estória avô, mas ainda não entendo de facto o que quer dizer, podes explicar?
- Claro meu neto. A lição que eu tive do Velho Paciência, foi "Desta terra nada levamos para o além da vida, demarque metas, após atingidas, desfrute delas. Pois, se te empenhas em conquistas encima de conquistas, além das tuas necessidades, acabas te perdendo na ambição e obsessão pelo materialismo" Entendeste?
- Entendi sim meu avô.
- Que foi que entendeste?
- Darei um exemplo "não devemos servir mais do que achamos que podemos comer"
- BRAVO, e depois te achas um mau aluno a Português.
Avô e neto continuaram a sua conversa. Finalmente José estava liberto do mau presságio de ter mais uma nota a vermelho. No dia seguinte foi à escola todo sorridente, a professora deixou-o para o fim, pensando que seria como habitualmente. Os colegas olhavam-no com algum escárnio. À medida em que Zé ia lendo a sua pequena estória, o dito e feito aconteceu.Teve êxito nas "massas" da professora e porque não dos colegas? Após ter terminado, foi aplaudido pela Turma. Bendito velho Paciência e a sua filosofia. Moveu muito mais que massas,desbravou preconceitos.
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