O Cronista das Ruas




Alfredo, mais conhecido por Fredox, é mais um entre tantos meninos de rua existentes na cidade de Maputo,  vulgo molwenes, mas este, a meu ver, tem algo de especial.  Em vez de reservas de cigarros, craque, Fredox tem um diário.
Sem tecto, um lar, alguém que vele por si além do pai do céu, Fredox está exposto a tudo, sua experiência de vida , sua esperteza e inteligência são os que o fazem encarar a vida sem medo algum. Cada dia é uma batalha, cada batimento do coração é um acto heróico. Muito cedo esta flor perdeu seus progenitores. à partir daquele momento ele soube o que era a solidão, o espírito de aventura da forma mais crua e nua. As ruas deram-lhe abrigo e ensinamentos brutos, pois nelas não se vive, sobrevive-se ou morre-se! Alfredo é dos poucos que guardam a sua integridade, apesar da brutalidade quotidiana que o rodeia. A sua mente recusa-se a guardar tudo aquilo que vê e sente. Com uma esferográfica encontrada entre os passeios da cidade, em papelão que lhe serve de amparo, lugar onde passa as noites, Alfredo escreve tudo aquilo que lhe acontece diariamente. Tudo! Os estupros que sofreu, as chantagens, os roubos entre os irmãos da calçada, as brigas no “El dourado” (contentores de lixo), as violações dos policias às manas prostitutas, enfim, delícias de Lucifer que acontecem pelas ruas da cidade de Maputo, todas elas cabem no papelão de Alfredo. Estas histórias levam.no para o mundo desconhecido dos sonhos. Esta flor tem apenas 16 anos de idade, mas a sua maturidade é bem maior do que isso. Quer haja o banho do luar, ou a brilho das estrelas, estômago saciado ou vazio, a face molhada com lágrimas ou irradiada de esperança, Alfredo escreve em seu papelão, tudo aquilo que seus olhos presenciaram, tudo aquilo que a vida lhe oferece. Do seu pulso saem reflexos do seu ego.

Detesto invadir privacidades, mas tenho de confessar que não me contive com o que encontrei. Andando eu pelas ruas dessa cidade, dei de cara com o menino de olhar sofrido, distanciado dos restantes que se encontravam chupando e cuspindo gasolina e fumando cigarros. Tudo para fugir da realidade e saciarem os seu estômago com a imaginação. Eu também estava fora do meu normal, na companhia de uns tantos copos que desfilavam na minha cabeça e me faziam andar ao ritmo das suas músicas. Encontrava-me invadido pela dita inspiração que as drogas e o álcool oferecem. Sentia-me poético…ia cambaleando de um lado para o outro, tentando chegar ao meu lugar de repouso. Recitando em surdina poemas, rindo do nada, achando que tenho tudo, Mal sabia eu que os meus actos, o meu estado “poético” seria imortalizado pelas palavras de Alfredo. Eu falava sozinho, conversava com todos os vadios que existem na nação intelectual “Chil”, nesta nação só existem duas coisas literatura e bebida

“Mas ove-lá você ilustre Camões, quando estiveste cá em Moçambique não te apaixonaste por uma Pretinha típica Moçambicana?”O tipo respondeu-me:

“Amor é fogo que arde sem se ver”


“Xeeeeeee brada Camões, então você andou com a gaja mas não reconhecias que gostavas dela não é?”La veio ele retrucar:

“É um não querer, mas que bem querer”

“Ha ha ha ha ha caramba, custava crer que uma pretinha iria te dar voltas o juízo não é? Hahahahah lixaram-te ó Camões, de facto pá”

Mais algum vadio falou:

“ A miséria do meu ser, tornou-se coisa à vista, sou nesta vida um qualquer que roda fora da pista…”

“SEU INTROMETIDO”gritamos eu e Camões.

“Mas ok, certa parte o Pessoa tem razão… nós acabamos por descobrir-te, eu só queria confirmar, era óbvio que o teu poema era para uma negra, mas me diga pá, como era ela… seios cheios ou o quê”

“NAO OUSES TEMERÁRIO ERGUER OS OLHOS PARA MULHER DE CÉSAR”

Sei lá quem foi o romano que veio intrometer-se.Senti que alguém havia invadido o meu mundo, havia dois olhos lúcidos em cima de mim, tive de interromper a conversa com os meus amigos e procurar a proveniência do olhar.“Não saiam daqui. Já, já eu volto, quero só ver quem está comendo-me com os olhos”Esfreguei os olhos e olhei em volta. Esbarrei com o olhar de um miúdo que estava sentado na entrada de um prédio quase a 5 passos de mim, com uma esferográfica na mão e um papelão com escritas. Aproximei-me dele. Este preparou-se para pegar em uma garrafa que estava ao seu lado, no seu olhar havia medo e as cicatrizes no seu rosto esclareciam o motivo, SOFRIMENTO!!Dei mais uns passos em sua direcção e falei-lhe:- Puto não tenhas medo, não te farei nada de mal, só quero ver o que escreves aí, e porque estás olhando muito pra mim.

O miúdo hesitou em mostrar-me. Acho que não encontrou na minha expressão fisionómica indícios de um agressor...Com um movimento robótico, tirava pouco a pouco a mão da garrafa, mantendo a outra no papelão enquanto me perguntava:

- Mano, vais conseguir ler?- he he he he - soltei uma gargalhada - claro que irei oh miúdo, um gajo está em bom estado.- Hannn..bom estado, ok! Quando fores a ler o que escrevi veremos se te achas em bom estado.- Passa lá isso - falei-lhe "seriamente" com olhar de analista literário... humm, analista literário, essa palavra soava-me bem.

O que encontrei naquele cartão jamais esquecerei. Havia títulos destacados, daqueles que aparecem sempre no telejornal e causam impacto de primeira. Palavras como:

"Violaram o cu de um amigo meu, tentaram me perseguir também mas eu consegui fugir graças a Deus. Deus? Por onde anda ele? Estou com medo, hoje eu não posso mais ficar aqui onde estou neste exacto momento que escrevo isto, vou mudar de esquina..."

Tive de redobrar a atenção, estava ficando lúcido aos poucos, beliscões da minha sensibilidade feriam-me a alma. Continuei lendo e tudo em minha volta ia desaparecendo gradualmente. Era apenas eu e o Alfredo e o mundo de Alfredo...

"Uns policias encontraram umas manas putas a trabalhar, mas naquele dia não estava ninguém, eles ficaram com elas ali no escuro onde uns outros manos vendem e fumam droga. Eu vi tudo, eu, bem mesmo! Me chamaram para ir comprar coca-cola para eles. Uma mana puta que é minha amiga, confia em mim. Quando me dão dinheiro eu volto com o que mandaram, não fujo. Ali estava cheio de seringas do hospital, muita, mas muita suruma. Havia pó branco espalhado em uma mesinha que inventaram e puseram vidro em cima.Tinham pessoas a se fu...ali mesmo, nem se escondiam dos outros. Preservativos espalhados no chão... mais muitas coisas, que até posso acabar este papelão aqui eu a escrever..."

Quem ficaria indiferente perante revelações brutas como estas? O álcool que existia em mim, por um toque de mágica sumiu, fiquei "lúcido".Alfredo olhava-me com um ar gozado, como quem diz "a maioria das coisas que vocês compram e lêem nos jornais é mentira, ou não é nem um quarto disto que tenho"Tive de mudar o rumo das coisas e procurar-me naquele papelão, pois foi por isso que abandonei os meus amigos da "nação Chil",

- Ouve-lá puto, estavas escrevendo o quê sobre mim?- He he he he - sorriu Alfredo.

Mesmo naquele transe em que me encontrava não pude deixar de me lembrar "O sorriso de um pobre, assim como as lágrimas... são sempre sagrados e sinceros"

- Mano, estava a rir de ti! São poucas as noites e os dias em que eu costumo rir... estas ruas estão cada vez mais perigosas. Há tanta maldade nelas. E o pior, nós que não temos quem nos ampare... temos de nos virar sozinhos. Sabe, há vezes em que tenho medo de perder a minha Fé, mas quando vejo pessoas como tu, sim, como tu, pois nunca alguém sentou ao meu lado sem olhar para as minhas roupas ou apertar o nariz. As pessoas passam por mim e cospem, ou atiram moedas com uma cara de quem diz "não fales nada moleque de merda, eu já sei que queres trocados". Ainda que eu apanhe tal trocado meu mano, quando compro pão para matar a fome, ao mastigar, sinto um sabor amargo, pois sei que ele foi dado com desprezo. Mas se me ofereces algo acompanhado de um sorriso no rosto, isso me faz acreditar que um dia as coisas podem mudar. Por isso quando perguntaste o que eu estava fazendo e peguei nesta garrafa, estava com medo, mas pronto para me defender. Porque já vi amigos sendo mortos aqui, metidos em carros e nunca mais nos cruzamos pelos contentores de lixo desta cidade. Para onde foram? Ninguém sabe...Felizmente eu aprendi cedo a escrever, toda minha experiência de vida está neste papelão aqui. Mas podes ir até àqueles amigos ali... são tão ricos em histórias quanto eu.

O miúdo pegou-me de jeito. Eu já estava mesmo com a sensibilidade estampada na face. E o pior, tudo que ele dizia fazia sentido. Quantas vezes não passamos nós por mendigos e nem nos damos tempo para dar algo que nos sobeja ou até fazer um certo sacrifício por eles, tudo porque dizemos estar ocupados, com pressa... passamos pelos contentores de lixo e fechamos as narinas, enquanto no mesmo local alguém está buscando o seu pão para matar a fome. Infelizmente eu já fiz isso, tive de assumir para mim mesmo que estava em erro e prometer-me que mudaria.

O dia já estava começando. Havia um certo movimento pelas ruas, de mais vadios como eu que regressavam a casa. Olhei para Alfredo com um pesar na alma, enfiei as mãos no bolso mas nada encontrei para ajudar a esta flor. Ela simplesmente levantou-se, olhou-me e disse-me:

- Não precisa meu mano, só o facto de teres te sentado comigo e me escutado já é muito. Estou muito feliz. Hoje vou enfrentar a justiça do mundo com mais esperança. Agora vá para casa irmão, estas ruas são perigosas.

Ajudou-me a levantar e deu-me um abraço. Novamente senti-me a cambalear rumo ao meu aconchego. Mas ali estava eu para todo o sempre, no papelão de Alfredo. Nas crónicas das ruas!


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