Reféns do Cupido




Gaspar e Sara, são mais dois entre tantos idosos aguardando o “momento derradeiro” para ir prestar contas ao senhor. Todas as noites, após a ceia, estas duas almas fazem um balanço de suas vidas.
Mergulham pelo passado dentro, desde os sonhos que esperaram e não aconteceram, até aos que as suas mãos materializaram. Escutando música em um pequeno rádio a pilhas, o avô Gaspar faz os seus cestos de palha, enquanto a vovó Sara borda os seus “mucumes” (tecido tradicional africano). Fazem-se perguntas, lançam-se piadas, segredos são revelados. Sim, segredos, mesmo depois de 50 anos de casados, há noites em que segredos vêm a luz dos seus corações. Então, aparecem expressões fisionómicas nunca vistas, gargalhadas, novas declarações... todo palavreado acaba em leves suspiros românticos, tão velhos quanto eles, mas sempre jovens, como se fosse a primeira vez.

- Sara, quero te contar algo, ”unga kwati nkata” (não te zangues mulher).

- He he he queres falar das meninas que tinham boca-de-sino, não é?

- Wa swi tiva nkata (sabes mulher), não podemos ir para a cova com essas coisas entaladas. Também já não tem muita importância, mas preciso te dizer!

- Pode o kanela Gaspar wanga (podes falar oh meu Gaspar)

- Está bem, mas unga kwati (mas não te zangues). Lembras daquela tua prima que tinha um senta baixo grandeeee, parecia comboio dos duru. Falava mal Português, nem deve ter feito segunda classe, mas tinha umas boas cadeiras, um bom senta baixo mesmo. Yah, muito bom...

- Maimuna?

- Nada, não é essa. Xeee essa nem senta baixo nem levanta pra cima, não tinha nada essa... espera vou te lembrar. Espera eu me lembrar também. Velhice dele pah!?

O avô Gaspar pensa e repensa , na desconhecida prima da sua querida esposa. Procura todas as faces das primas da avó Sara que tinham um “senta baixo” magnífico. Foram tantas as moças de boca de sino que ele apreciou. Vovô Gaspar foi um grande pegador quando jovem, toda a menina do bairro estava interessada no Janota Gaspar, que havia feito a terceira classe e trabalhava com gente branca. Isso era motivo para ser alvo de assédios causados pelo seu charme. Pela noite, entre os becos do Xipamanine, o Avô esfregava-se com uma bela negra ou mulata. Estas saíam felizes, confiantes de que a “vitória” era delas. Pensando que haviam dado prazer nunca vivido ao vovô Gaspar. Mal sabiam que esse só gostava de provar. Imitando as brincadeiras que os rapazes faziam com as vendedoras de amendoim. Chamavam-nas, como quem quer comprar e diziam:

- Amendoim, amendoim, anda aqui.

As coitadas chegavam todas esperançosas, já que a ideia era vender mais de quatro copitos por dia para poder garantir o verde da ceia. Mas tal coisa acontecia raramente. Um dos jovens pedia para provar e depois o outro e mais um... assim sucessivamente. Cinco minutos depois o chão estava cheio de cascas de amendoim e quem comprava era só um, como se não bastasse, a tampa mais pequena! Por vezes nem isso acontecia. Acabavam por gracejar sempre, ”vai -te embora mendoita, você torrou muito isso ai”.

Pronto, o Avô Gaspar bate na sua testa e sorri. A Sara nota que o velho já descobriu o nome entre as teias das lembranças.

- Nkata. Já lembrei o nome, lembrei. Ha ha ha há. Nkata ni dzumukile (esposa já me recordei)

- Mas Gaspar nome dela é “dzimukile’’? Para de me matar de curiosidade e diga logo como se chamava.

- Aweeeee, ha ha há - O avô Gaspar esbanja gargalhada enquanto tenta falar o nome da pobre moça, que agora deve estar tão velha quanto eles - Nome dela é MANDOITA. Lembrei, é Mandoita, tinha um senta baixo garandeeeee parecia combói dos duro.

- He he he prima Mandoita, hawena Gaspar (prima mandoita, você Gaspar) já nem me lembrava dela eu. Yuu!? Deve estar lá em Xai Xai. Porque casou com Mpfumo um mineiro que fez uma casa grande para ela, lá mesmo em Xai-Xai, em Chiziane. Vendia amendoim por isso não usavam muito esse nome de “Vovote. Acabou ficando Mandoita mesmo. Você ainda esta bom da cabeça meu Janota.

Após estas palavras de carinho e saudade, a velha pergunta o motivo de tal evocação da nobre prima Mandoita.

- Mas você ainda não me disse porque foi buscar prima Mandoita até aqui no nosso quarto, a uma hora destas.

- Espera weno (você). Lembras daquele dia em que baptizaste? Você só baptizou uma vez minha esposa, por favor não te esqueças disso também. Porque eu não poderei te fazer lembrar, não era padre, nem sequer entrei na igreja, xiii com teu pai lá mesmo. Parecia que comia leopardos aquele! Iria pedir desculpas ao Senhor Jesus e mandar porrada para cima mim só. Grande espertalhão aquele...

- GASPAR!?

- Ham?

- Onde meu Pai entra na Mandoita? Estamos a falar de prima Mandoita, aquela que você diz ter um senta baixo grandeee como combóio dos duru, (em tom malicioso, a velha imita a cara do esposo) Não é? Então começa a falar do meu falecido pai para fazer o quê? Continue a falar do que você fez com Mandoita! Digamos que eu ainda não saiba o que aconteceu. Você pensa que eu não descobri o que aconteceu quando ias para casa? Estás admirado porquê? Por eu me lembrar do meu baptismo nem? Minha cabeça ainda está bem boa. Eu mandei Dodito, filho da Mariana. Aquele menino me contou tudo... he he he se você visse ele a falar irias pensar que era teatro até. Depois Mandoita estava de saia de bolinhas pretas não era? Eu me lembro bem porque Dodito me contou tudinho. Yah, pensa não sei de você com Mandoita?

- Mas não fui eu Sara, aquela me perseguiu, eu estava indo para casa. Ela chega como um bandido e me pega o ombro. Eu virei com medo até, tinha um pouco de escudos no bolso. Mas depois vi que era ela. Está bem, então, ela começa a dizer que gosta de mim. Que você não tinha um senta baixo grande como o dela, e ela sabe muito bem que eu gosto de senta baixo grandeee como combóio dos duru. Nem me deu tempo para falar nem nada, ali estava escuro. Sabe, eu me senti violado. Pegou minha mão e pôs em baixo da saia dela. Nem trazia calcinhas. Eixxxx melhor eu calar antes de provocar coisas no meu coração e esta coisa aqui não trabalhar. Mandoita era malandra xeeee...

A esposa olha-o com raiva nos olhos, como quem diz ”melhor concertares esta borrada antes que durmas com os pés gelados”. O velho conhece-a, apenas um olhar chega para descobrir tudo aquilo que lhe passa pela cabeça. Esboça um leve sorriso e inicia uma pequena serenata.

- “Sabe, minha esposa, Mandoitas foram tantas pela minha vida, bem sabes disso. Umas com senta-baixo grande, outras com peito para firmar uma padaria. Tão lindas, tão elegantes. Mas nenhuma delas fez em mim o mesmo que você fez, e continua fazendo. Nenhuma foi motivo de tanta felicidade, só por saber da sua existência! Assumo que já errei várias vezes, que no mesmo número de vezes eu te parti o coração, oh nkata! Mas a tua paciência e amor ajudaram a superar esses momentos difíceis, e hoje, somos o que somos. Dois idosos apaixonados, reféns do cupido, e isso, eu não trocaria nem por um milhão de Mandoitas”

Como sempre, a vovó Sara não se contém, uma pequena lágrima teima em sair, mas, em uma altura dessas, até isso cansa. Tudo que ela consegue falar é um breve “também te amo meu janota”. E nesse exacto momento, os cestos e os bordados são deixados de lado. Duas mãos agarram-se com todas as forças que ainda restam em si, deitam-se e entregam-se ao mundo dos sonhos.

A vida vale a pena quando estamos do lado de quem amamos, quando lutamos pelo que sonhamos e é tão bom quando o alcançamos. Obstáculos são óbvios, sempre existirão, mas se estivermos do lado de quem nos faz bem, sempre teremos força suficiente para vencê-los. Pois o mais importante não é sair vencedor, mas sim ter vontade de ser vencedor e fazer por merecer. É nisso que estas duas almas acreditam, foi com base nisso que um lar foi erguido. É duro quando chega o momento e que eles assumem que têm de separar, mas não ousam pensar nisso, pois algo é evidente, nesta terra todos estamos de passagem. Convém viver cada dia, que o amanhã cuidará de si.



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