No Embalo da Cabra Cega
Era uma manhã de quarta feira, lá prás cinco e tal, Wilson encontrava-se sentado na praia, formalmente vestido, embora desarranjado. Com uma garrafa de wisky na mão (pela metade). Sorvia o seu “combustível” calmamente, com o olhar a perder-se no horizonte, enquanto dava longos tiros no seu charuto.
Era dia de trabalho, mas isso pouco lhe interessava. Nesse dia havia reuniões importantes com os chefes dos comandos Provinciais, visto que ele era um agente da lei, nesse caso, trabalhava para o estado como polícia, em um escalão elevado. Mas isso não teve peso nenhum em seus pensamentos, o seu dispositivo de responsabilidade não o acusou. Sentia-se hiper fatigado, a noite havia sido esgotante e com revelações brutas. Custou manter-se em pé para sair do local onde estivera a divertir-se com os amigos e dirigir ate à praia do Costa do Sol, onde se encontrava nesse momento.
As ondas batiam com fúria e emitiam os habituais e melodiosos sons matinais. Os pássaros já davam espectáculo pelo céu, cumprimentavam-se, trocavam as boas novas de terras distantes... uns tantos pescadores passavam por ele rumo aos seus barcos, prontos para mais uma jornada no mar, para garantir o seu sustento e de muitos outros. Mas Wilson estava perdido em seus pensamentos, tudo que estava a sua volta eram insignificantes. Suas olheiras eram a forte evidência de que não havia pregado o olho e de que tinha se embriagado e fumado bastante. Pobre homem! Pensava na sua triste sina, na vida pela qual batalhou com todas as suas forças desde o seu “sazonamento humano”, até ao momento em que era um homem já feito, dono de si e dos seus caprichos. Cinquentão, viúvo, pai de uma única filha com um futuro promissor e um bom exemplo para a juventude. Natália era a sua razão de viver e de tanto sofrimento neste mundo. Perdeu a sua esposa muito cedo e como muitos outros, poderia ter se tornado em um alcoólatra ou drogado. Poderia não ter fortuna alguma para deixar à sua menina, caso o momento derradeiro chegasse. Mas não, Wilson batalhou para que não lhe faltasse nada para a educar e fazer dela alguém digna de respeito, afecto, amor e consideração. Embora os modos usados, por vezes fossem um poucos bruscos, a sua intenção era das melhores. Wilson era demasiado seco com a Natália, nunca conversavam direito sobre as várias questões que apoquentavam. Os breves diálogos eram sempre relacionados com dinheiro para as despesas da casa, as notas escolares ou má disposição, ou em caso de doença. Wilson nunca tivera tempo para saber se a filha já namorava, como lidava com os “stresses” da adolescência entre outros problemas que a vida oferece “aos caloiros da responsabilidade”.
Sendo assim, todas essas respostas que o pai não dava, a filha procurava fora de casa, alguém teria de satisfazer a sua curiosidade. E as ruas encarregaram-se disso, as ruas e mais alguém, a dita “globalização” que inxeridamente invade os nossos lares pelas tv’s, rádios, Internet, entre outros.
De certa parte até que se pode entender o que levou Wilson a agir assim. Tinha bastante pressão sobre o seu humilde ser, tanto no trabalho como em casa. Mas a vida é assim, quando se fica viúvo, assume-se um terceiro papel, o de Mãe ou de Pai. Pois é, qualquer que seja o destino, é indispensável uma amizade sólida. Nesse caso, antes de mais nada, temos de ser amigos!
Natália era excelente como filha, como aluna (estava no último ano na faculdade de Medicina), mas, o mais estranho, Wilson não havia notado, ela não tinha amigos. Apenas colegas da faculdade com quem raramente saia para ver um filme, ou ir a uma festa, ou encontros da faculdade. Wilson viajava bastante, mas estava sempre em contacto com a filha, quer pela internet, como em chamadas pelo telefone fixo. Nesse ponto a modernização ajuda, pois por mais longe que a gente esteja, permite que entremos em contacto com quem desejarmos. Como muitos, Wilson e Natália faziam uso disso.
Na terça-feira de noite, após Wilson ter chegado da viagem, não lhe apetecia ficar em casa a dormir e Natália havia deixado um bilhete dizendo que não iria dormir em casa, pois estava com uma colega da universidade. O que não foi muito agradável para ele, mas, nessa noite, Wilson encontrava-se disposto a mudar o cenário das coisas no que dizia respeito à sua relação com a filha, pois ela já estava uma mulher, dentro em breve estaria com ideias de se casar e fazer a sua vida. Sendo assim, não se irou pelo bilhete encontrado. Aproveitou para sair para ir se divertir. Ligou a um colega amigo seu Deputado e este disse que se encontrava na zona “duplamente quente, o próprio inferno na terra ” já que “ zona quente é prostíbulo de pobre” - Ele referia-se aos prostíbulos secretos, onde os nomes graúdos da Praça se vêm refastelar com os seus “produtos pré-encomendados”. Muito dinheiro desviado e humildemente ganho é gasto nesses prostíbulos da elite. - Wilson sorriu, pareceu-lhe uma boa ideia ir dar uma volta e ver as diabas de perto, um bom corpinho jovem não era de se jogar fora, nem depois de ter percorrido o mundo inteiro. Fez a sua reserva, o “pitéu” mais caro da noite. O colega soltou uma gargalhada de espanto. O Wilson era o tipo mais certinho que ele conhecia do nada estava pagando uma “puta cara”? Era bom de mais para ser verdade.
Wilson serviu um duplo de wisky, bebeu num só trago, pegou nas chaves do carro que se encontravam na mesinha de centro e saiu, todo rejuvenescido pelo que ia pôr em prática, depois de tantos anos.
Com uma bela música Jazz do internacional Moçambicano Djimmy Dlhudlu, ia dando demorados tiros no seu charuto, enquanto dirigia para o inferno na terra, ao ritmo da cabra cega. Feliz, mas ansioso!
Chegado ao local, uma vivenda de dois andares, numa zona prestigiada da cidade de Maputo, foi só olhar para o guarda com serenidade, que este entendeu logo que se tratava de mais um graúdo (isso foi o que ele pensou, já havia sido descrito há muito).
Entrou todo possante e foi recebido por jovens belas, que se encontravam vestidas apenas de ligenrie, com um sorriso nos lábios, cativante, sedutor, diabólico... Ele sentia a sua caixa para uma longa secção de bebedeira, fumo e sexo. Comprimento o seu amigo Deputado com quem falara antes de sair de casa, este expressou-lhe o seu contentamento por o ver presente no “ringue da loucura”. Perguntou pelo seu “produto” e disseram-lhe que dentro em breve poderia desfrutar dele, mas que antes se juntasse à malta (graúda claro) que se encontrava no bar da casa bebendo e petiscando do bom e do melhor. E para lá foi, mas não estava com a cabeça naquele lugar, precisava “aliviar a tenção”. Dentro em breve surgiu uma linda quarentona, que lhe disse que já podia dirigir-se ao seu quarto e que lá encontraria o “pitéu” da noite. Nesse momento, Wilson sentia os batimentos do peito a acelerarem, o fumo começava a invadir-lhe a alma, o álcool que até ao momento era indiferente, começou a fazer efeito. Despediu seus companheiros e as meninas peladas que desfilavam pela sala e o encorajavam a “fazer um bom djop”. E a não esquecer de pôr a famosa máscara que o pitéu obrigava usar.
Seguiu ao quarto indicado, abriu a porta, deu de cara com uma luz vermelha, em um ambiente altamente sofisticado, temperatura, regulada, com bar, uma cama bastante espaçosa e com a máscara nela... mas lá não estava o seu prémio. Entrou e trancou a porta, mas antes colocou o famoso recado “do not disturb”. E exilou-se naquele “paraíso vermelho”. Jogou-se na cama e despiu-se por completo, queria paz, curtir os momentos malandros que se oferecera. Pegou na máscara e pôs, embora não visse o motivo de tal coisa, uma prostituta deve se contentar com o rosto dos clientes, pois o dinheiro é quem fala, mas isso até que o excitava, daria um ar mais “sinistro” na cena. Muito em breve, uma bela jovem apareceu, toda linda, carnuda, ancuda, com os seios estupidamente redondos e cheios... mas a sua face estava coberta por um leve pano preto e só se viam os olhos e as belas madeixas. A jovem fez um gesto para mostrar que não deveria tentar arrancar o disfarce e Wilson fez um sim com a cabeça, sinal de que obedeceria, ou tentaria obedecer.
Começaram os jogos íntimos, coceguinhas por aqui, chupões acolá, beijos, carícias, palmadinhas e gemidos suaves... Wilson delirava perante tal máquina de sedução. O seu dinheiro estava sendo bem empregue, mesmo antes de a penetrar, já se sentia sufocado pelo prazer de a ter em seus braços, de ser comandado por aquela besta formosa. Se estava pelado, quem faltava fazer o mesmo era ela e ela o fez, tão suavemente que Wilson temeu ejacular antes da hora... mas tal coisa não aconteceu, parece que o fumo e wisky estavam dando efeito. O “patrão” estava potente. Mandaram o deitar com um leve empurrão, ele obedeceu. A jovem pegou “nele” e cavalgou, ia rebolando, subindo e descendo suavemente, a um rítmo agradável de se sentir e teimava em segurar nas mãos do cliente. E este? Estava nas arábias, se para ela quilo era um cavalo, para Wilson parecia mais o passo de um camelo. A prostituta, confiou nele, soltou-lhe as mãos, enquanto fazia a sua marcha erótica, Wilson pegava a cabeça, as coxas da jovem... sentia necessidade de a beijar, molhar seus lábios que teimavam em soltar gemidos. Em um movimento brusco, pegou na cabeça da jovem e tirou o pano que a cobria.
Melhor fosse se o mundo tivesse acabado no momento em que tal coisa aconteceu, teria sido melhor que engolir o grito de pavor que tentava se apoderar dele, ou deles. A jovem que tanto rebolava a ritmo de um camelo, cavalo ou coisa parecida, era a natália a sua filha!
Apesar da luz fraca, não pode deixar de reconhecer os traços do rosto da sua flor, da sua menina que ele ajudara a trocar as fraldas, ensinara a falar, levava à escola, ao hospital... não, não, não podia ser, como tal coisa foi acontecer, ele havia dado tudo de si, tudo que fizera em sua vida foi trabalhar para que não lhe faltasse nada, onde teria errado? Porquê? Porquê? Porquêee .
- Que merda estás a fazer aqui?
- Pai!?
- Que merda é essa?
Silêncio e mais silêncio!
Wilson vestiu-se apressadamente enquanto ordenava para ela:
- Quero-te em casa daqui a 20 minutos, entendeste? 20 minutos!
Bateu com a porta e saiu, apressadamente, com rumo incerto. Não estava ninguém no bar, estavam todos ocupados em desfrutar dos seus produtos. Para ser sincero nem sequer reparou nisso, queria apenas escafeder-se daquele lugar, para a terra do nunca. Enquanto dirigia velozmente, fumava, mas não sabia para onde iria, para casa é que não podia ser. Apesar de estar bastante nervoso e com nojo de si próprio, soube se controlar, se fosse para casa ainda seria capaz de mata a sua própria filha... filha com quem acabara de ter prazer nunca alcançado, nem com a sua esposa, que era Mãe dela!
Então, o único lugar que lhe veio a cabeça foi o seguinte, PRAIA! Eis o motivo que o levara a estar naquele lugar, muito cedo. Estrangulando a garrafa de wisky e o charuto, ia pensando no que fazer perante tal situação que acabara de acontecer. Mandava a miúda, que agora já era mulher a um convento? Não, isso não mudaria nada! Dava-lhe uma parte da sua herança agora e mandava-a para o fim do mundo, já que era médica teria emprego em qualquer lugar, ou terminava com a sua própria vida? Naquele exacto momento, enforcava-se ou acidentava-se propositadamente em algum muro ou poste eléctrico da capital?
Procurava os motivos que tinham levado a miúda virar uma prostituta profissional, mas não encontrava, ou teimava em evitá-los. Por fim acabou caindo em si.
“Fui demasiado rígido na sua educação, nunca fui um pai presente. Tudo bem que precisava trabalhar para garantir o seu bem-estar, mas poderia ter sido mais amigo, em vez de pai. Quantas perguntas ela teve e eu não estive para satisfazer, quantas? Que Deus me perdoe por tal monstruosidade, pretendo recomeçar tudo de novo, não sei como, mas tenho de o fazer, tenho de encarar a realidade. Vou para casa e peço-lhe desculpas, espero que ela me perdoe, pois o culpado nisso tudo sou eu, sou eu quem devia velar por ela e satisfazer suas dúvidas assim como dar-lhe forças em seus projectos, merda de vida, mas vou a tempo, creio que sim. Podemos começar tudo de novo, mesmo que seja distantes um do outro”
Levantou-se e dirigiu-se ao carro, dentro em breve já se fazia rolar velozmente entre as entradas de Maputo. Não tardou para chegar em casa, o seu coração batia a mil...
- NATÁLIA MINHA FILHA, ME DESCULPE, PAI FALHOU - falava enquanto chorava.
- Natália me perdoe, por favor, vamos começar tudo do zero, arranjo-te um trabalho no estrangeiro, vives lá e fazes a tua vida, se quiseres nunca mais olhas pra minha cara, mas me perdoe filha.
- NATÁLIA!?
Silêncio.
- NATÁLIAAA...
Novamente silêncio
Wilson sentiu uma dor forte no peito, correu pela casa toda procurando a sua filha enquanto gritava o seu nome, foi ao seu quarto, mas ela não estava lá, foi à cozinha, idem, por fim lembrou-se da casa de banho. Dirigiu-se a correr e abriu a porta, ao fazê-lo, um grito demente. Lá dentro estava Natália, MORTA, com vários comprimidos espalhados no chão, veneno para ratos e uma garrafa de GIN. Ao lado dela uma breve carta em que estava escrito.
“Não podia começar novamente pai, não iria conseguir. Foste um bom pai, todos nós erramos
Acontece! Eu fui curiosa, não quis saber que se estavas ausente era para dar-me o melhor, trabalhavas por mim para que não me faltasse nada. Mas eu precisava de respostas para certas perguntas e isso, os bens materiais não puderam dar-me, nunca poderiam. Fui tentada por uma colega minha, que me recomendou e ensinou-me a ser tão discreta quanto ela. De início pensei que fosse algo passageiro, mas o vício pela adrenalina foi aumentando gradualmente. Já não conseguia manter-me em casa, mesmo quando o fazia, a minha alma estava entre as ruas, entre aquela gente graúda que bem conheces. Quando dei conta dos meus actos, já estava viciada em satisfazer as pessoas sexualmente, não pelo dinheiro, pois lutaste arduamente para que nada me faltasse, mas sim pela sensação de liberdade e poder. Já estava atada nas malhas que a minha curiosidade teceu, e não conseguia me libertar delas. Pai, sinto muito por as coisas terem terminado assim, não te culpes, a culpada nisto tudo sou eu, foi a minha estúpida atitude e ingratidão. Peço que me perdoes, não conseguiria olhar mais para ti, viver com isso dentro de mim, que morra tal sucedido em primeiro e em segundo, esta tua filha que tanto te ama. Perdoe-me Pai, AMO-TE!
Natália”
O previsível aconteceu, Wilson sentiu seus pés ganharem raízes, não podia mover-se para tentar levar ao hospital e procurar salvar a vida da filha, mas era evidente que ela estava morta. Na sua cabeça várias tragédias aconteciam ao mesmo tempo, todas aquelas que já haviam vivido desde que começara a diferenciar o bem e o mal. Via a cara da sua falecida esposa amaldiçoando-o, os seus falecidos pais e sogros. Os seus amigos, os vizinhos, até desconhecidos. Sentia a sua sanidade mental sendo invadida, não tinha controlo do que se passava em seu interior... era incontornável o grito que viria. Wilson soltou toda a sua alma para o mundo e o diabo apoderou-se dela.
Os vizinhos acudiram pensando que se travava de um assalto... visto que a porta estava aberta, entraram e deram de frente com o corpo da jovem e Wilson falando sozinho. O que era estranho
- Gira, mexe, não para, por favor não faz isso. Não para, por favor não faz isso. Desculpa, me perdoe...
Ficaram com os corações nas mãos, pois o Pai pegava no corpo nu da filha e murmurava demência. Não quiseram dar atenção a ele, tentaram ver se ela ainda respirava, mas nada. Estava fria como uma manhã de Junho. Tentaram falar com ele para saber o que acontecera na véspera, mas ele continuava com as mesmas palavras.
- Gira, mexe, não para, por favor não faz isso. Não para, por favor não faz isso. Desculpa, me perdoe...
Entre olharam-se e concluíram:
- Está louco!
Autoridades e mais curiosos foram chegando para ver dois corpos sem alma. Uma triste história havia ocorrido, tudo por falta de conversa, amizade e confiança. Talvez pudesse ter acontecido mesmo com isso, mas, a meu ver, poderia ter evitado. Não quero incluir o “se” nisso, pois este, é um túmulo de hipóteses! Mas é nisso que acredito, é nisso que creio, num mundo sem cabra cega!
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