No Limite da Tolerância

Era manhã de terça feira, a pequena Rosa se dirigia à escola onde estudava e aprendia a conhecer os “mistérios” do mundo. Sempre fora uma boa menina, atenta e doce com os que a rodeavam. Mas existia um lado escuro. Rosa pouco se abria com os seus, de amizades só tinha uma em que ela podia se apoiar quando precisasse, mas sentia vergonha do que ocorria quando tinha de enfrentar família alheia irradiando felicidade. Pequena Rosa, ainda na flor da idade, esperando o sazonamento da vida, mas com bastante carga em suas costas, seu coraçãozinho apertado, quase inundado de tantas lágrimas engolidas pela calada da noite, teimava em não mostrá-las ao mundo, mas por vezes era impossível, jorravam, ferviam em sua face, molestavam seu peito…
14 anos de idade, em que apenas 7 haviam sido vividos dignamente. Os restantes eram reflexos do ambiente tumultuoso em que habitava. A vida roubara-lhe a infância e com ela o seu sorriso… A pequena rosa era uma flor tatuada com as agulhas do caos. Suas breves intervenções durante a aula eram inteligentes, mas a professora já havia notado que esta flor ocultava uma força ainda maior, havia algo impedindo o seu brilho. O seu olhar melancólico e humilde exalava mistério e compaixão a quem prestasse atenção nos traços da pobre rapariga!
Durante o intervalo, Rosa não se envolvia com o restante da turma que desatava a correr pelo parque, pelo contrário, sentava-se encostada a uma árvore qualquer e desatava a escrever. Na maior parte das vezes estava com olhos vermelhos, seriam lágrimas? Rancor? A professora não sabia explicar, de longe ia observando a pequena voando em seu diário improvisado. O que será que continham aquelas linhas? Mas a jovem professora não se dava ao direito de intrometer-se na vida da pequena. Fazia isso quando proporções maiores dos problemas a obrigavam, mas Rosa era um caso tão especial, que somente meditar nisso a fazia sentir calafrios percorrendo-lhe a espinha.
A sua vida também não era um pomar de alegria. Era casada com um homem que ela achava que amava, gradualmente, dúvidas se apoderavam do seu ser, dia após dia a sua Fé ia enfraquecendo. Seu esposo a molestava.
Chega uma fase da vida em que nos cansamos de ser fortes, por mais que a gente saiba que pode se reabastecer na fonte “inesgotável” em que nos abastecemos há bastante tempo, por vezes até essa vontade de superar, essa esperança que nos guia, é ofuscada pela revolta, pelo ardor da decepção…
Nessa terça feira gelada, manhã com céu nublado, sem canto dos pássaros nem raios do sol invadindo o chão dos justos e injustos… duas almas haviam decidido abrir-se uma com a outra. Coincidentemente eram Rosa e sua jovem Professora. A pequena não havia pregado os olhos, o que não era tão diferente dos outros dias. Sempre que chegava a casa, a madrasta esperava-a com todos os afazeres do dia, e a menina mesmo cansada tinha de lavar, limpar… tentar deixar a casa em ordem, para não ser vítima de espancamento proporcionado pela víbora. Por onde andava o pai? Perguntava-se sempre, embora estivesse sempre em casa quando ela dava essas voltas domésticas, Rosa olhava-o como a um estranho. Aquele não era o pai que lhe pegava ao colo quando era mais nova, que lhe oferecia presentes simples, mas com muito amor… não, aquele homem era um cúmplice da violência que ela sofria, pois ele observava, e nada fazia… Aquela flor guardava rancor e ódio, nada falava, mas todas as suas frustracções eram depositadas em seu pequeno diário. Desde o choque de ver seu pai tendo relações sexuais em sua frente sobre o propósito de estarem fazendo um irmão pra ajudar-lhe com os afazeres domésticos, até às pancadas que ela sofria quando alegava estar doente… tudo e todos os suspiros do seu descontentamento eram compartilhados com as folhas brancas. Rosa sabia que precisava de ajuda, e a ú nica pessoa que ela via para a ajudar era a sua Professora, que embora se abrisse pouco com os alunos, transmitia-lhe confiança. Havia decidido que não falaria, apenas entregaria o pequeno diário e se retiraria. Não queria encarar aqueles olhos, por mais confiantes que fossem, Rosa estava com o olho inchado, a noite havia sido longa. Mais uma vez entre tantas, ela sofrera agressões perpetradas por aquela a quem cabia velar por si. Então resolveu sair cedo de casa, para encontrar a professora antes dos seus colegas estarem presentes.
Por outro lado, a professora resolveu sair mais cedo também. Havia tido uma noite horrível, fora vítima de espancamento do seu marido. Nem sempre o grau académico significa educação e respeito com o próximo. Por mais inteligente que o seu cônjuge fosse, aquele homem era um mostro! E a dita inteligência era a sua capa. Havia decidido que ira apenas informar ao seu director que não daria aulas nesse dia e deixaria a matéria programada com um outro professor. Sentia-se fatigada, e o seu coração clamava por justiça.
Chegou á escola e tudo estava aparentemente deserto, dirigiu-se à sua sala enquanto meditava no passo que pretendia dar, mas algo a impedia, são as estúpidas lembranças e a parva esperança de que virão dias melhores, que a fera pode transformar-se em príncipe encantando… era um dilema em seu ego, a luta entre o coração e o cérebro. Enquanto se debatia entre a razão e o amor, a porta da sala abriu-se e uma mãozinha apareceu, empurrando cautelosamente a porta e deixando espaço suficiente pra o corpo passar. A jovem professora prendia os olhos enquanto uma menina de baixa estatura andava timidamente sobre o chão da sala. Dirigia-se à sua secretária com a cabeça agachada e um caderno na mão, o qual depositou na secretária. Em breve, uma voz soou:
- Leia Senhora Professora
- O que é isto Rosa?
- Leia Professora, só assim irá entender!
A professora tirou os seus óculos de vista da sua bolsa, usou e iniciou a leitura:
“Sou a única filha do meu Pai, órfã de Mãe desde os meus sete anos de idade. Sete anos de que tenho muitas saudades. Até aí a minha vida era como de qualquer criança comum. Mas tudo mudou quando Deus decidiu me roubar uma das pessoas que mais amava neste mundo. Nunca entendi a decisão dele, sempre estudei bem, sempre respeitei os mais velhos, sempre ajudei aos meus amigos e até aos que não gostavam de mim, com eles me importava. Então eu não consigo entender, porque será que Deus me levou a Mãe? Tenho tantas perguntas para lhe fazer. Vivo com um homem a quem chamo de Pai, mas esse Pai morreu, tudo que sobrou foi o nome, e um corpo que usa a força para impôr respeito. Tem como aliada a sua amada, ou cúmplice desse crime que ele vem cometendo. Sou escrava naquela casa, faço tudo sozinha, carrego o peso que eles deveriam carregar. Roubaram-me a infância, o meu sorriso, as brincadeiras de criança, roubaram-me os meus direitos. Tudo que ganhei foram cicatrizes, imagens horríveis, espancamentos, insultos… Eu luto para não mostrar isso ao mundo, mas não posso mais, cansei de ser um grito no escuro. Não suporto mais ser o jumento da aldeia, suportar as chibatadas e nomes pejorativos, e nunca reclamar. Preciso de ajuda, a minha bondade chegou ao limite, recuso-me a perpetuar esta situação e daí a minha decisão de denúncia…”
A professora não pode continuar a leitura, parecia que a aluna havia feito um raio x da sua pessoa, “tudo” aquilo que a vinha atormentando desde que se passou o primeiro ano de casada, estava ali, no que Rosa havia redigido, e sentido!
A professora levantou-se calmamente enquanto tirava os óculos que estavam molhados pelas grossas lágrimas que não pôde conter, o seu rosto estava com vestígios de que havia sido torturada, tortura essa que ela recusava a denunciar, tudo pelo dito amor que ela acreditava que existia. E a rapariga continuava olhando para o chão com as mãos cruzadas. A jovem professora pousou os óculos na secretária, e com a mão direita pegou delicadamente no rosto da menina. O impacto que ocorreu assim que prendeu seus olhos nos da menina foi enorme! Havia semelhanças, ligeiras diferenças separavam aquelas duas almas que o acaso uniu. A rapariga estava com uma parte do rosto inchado… os olhos que ela sempre vira vermelhos, deixaram escapar uma lágrima que significava cansaço, revolta… muito em breve a boquinha da Rosa abriu-se e deixou escapar umas poucas palavras, entre- cortadas pela dor que sentia em seu coração, que carregou durante 7 anos:
- Pro-fe-so-ra … a-ju-da-me!
Impossível ficar indiferente quanto aos problemas que a envolviam, a professora não deixaria que o tão estimado amor e esperança que a envolvia, acobertasse tamanha brutalidade de que ela era vítima. E quanto a esta flor? Se ela consentisse nestes actos, no que ela se transformaria? Em mais um cúmplice, tanto quanto os seus progenitores. Actos monstruosos daquele género tinham de ser denunciados, ela sabia que não devia mais adiar a decisão que durante muito tempo habitara em si. Estava na hora de ter atitude…
- Rosa, também estou passando pelo mesmo que tu, somos duas mulheres! Se mesmo eu, com toda minha idade e “maturidade” não posso mais aguentar isso, quanto mais tu? Oh, minha criança, está na na hora de terminarmos com tudo isto. Podemos não acabar com actos destes, pois estão espalhados pelo mundo, mas estaremos ajudando o mundo a tornar-se em um lugar melhor. Não te preocupes com o resto, eu irei velar por ti, vamos lutar por isso juntas!
Assim que estas palavras foram abafadas por um abraço demorado, o toque para a concentração dos alunos e professores no centro da escola, soou. Duas mãos seguraram-se com firmeza, enquanto saiam com rumo incerto. Mas algo estava completamente claro, a denúncia era o destino! Provas? Estavam estampadas em seus rostos. Passaram enquanto todos se preparavam para entoar o hino, não olharam nem para esquerda, e nem para a direita… deixando todos espantados com tal atitude. Alguns iniciavam julgamentos, soltavam risos… mas ninguém sabia ao certo o que se passava! Oh sociedade hipócrita… porque julgais sem conhecer os reais motivos?
Planos não existiam, mas elas tinham uma à outra, e lutariam para que a justiça fosse feita. Para que os malfeitores pagassem pelos seus crimes, seria difícil, mas não impossível!
Rosa, não seria mais a jumenta da aldeia e a Jovem Professora, nunca mais seria um saco de ginásio!
“A justiça é a vingança do homem em sociedade, como a vingança é a justiça do homem em estado selvagem.”
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